Uma cortina de “vidro” ocupa todo o palco, à sua frente Tom Wingfield começa a encenar uma peça que nos leva até à América dos anos 30 para nos relatar algumas das suas memórias. Enquanto memórias não têm que ser exactamente realistas, mas sim a forma como ele as recorda. Na altura vivia com a sua mãe Amanda e a sua irmã Laura, mas o seu sonho era fugir daquela casa para sempre; mas Amanda tenta prendê-lo, ao mesmo tempo que deseja desesperadamente que Tom arranje um namorado para a sua tímida irmã, que vive fechada no seu mundo de figurinhas de vidro.
O primeiro contacto que tive com esta peça de Tennessee Williams foi quando vi a adaptação cinematográfica de 1987, dirigida por Paul Newman. Sobre esse filme na altura escrevi o seguinte “Newman adapta com sensibilidade, mas também com “chateza”, e filma como se se tratasse de uma peça de teatro”. É verdade, recordo-me de ter gostado dos actores, mas de ter achado o filme chato. Assim, foi com algum receio que fui ver esta produção dos Lisbon Players. Mas não havia razões para isso.
Tal como Newman, António Carlos Andrade dirige a peça com sensibilidade e sente-se a ternura que ele nutre pelos personagens da história. Os actores movem-se com fluidez pelo literalmente brilhante cenário, onde tudo, cortinas e móveis, se assemelha a vidro, dando imediatamente uma sensação de fragilidade que nos remete para a personagem central, a doce e tímida Laura. Nas mãos competentes do director, as cenas sucedem-se com o ritmo certo, sem atropelos e sem monotonia. Pessoalmente, dispensava o uso de um ecrã em palco (uma sugestão do autor da peça), mas não me incomodou e funciona muito bem na cena do autógrafo.
Tal como em todas as peças de Tennessee Williams, as personagens são fortes, bem caracterizadas e só um excelente elenco lhes podia dar vida. Felizmente, o quarteto que as vive no palco do Lisbon Players não podia ser melhor e Andrade soube como tirar o maior partido do talento à sua disposição, numa direcção de actores sem falhas onde especialmente brilham as actrizes.
No papel de Amanda, a mãe que foi uma beleza sulista cheia de pretendentes (qual Scarlett O’Hara) Celia Williams enche o palco com se fosse um furacão. Nunca duvidamos que ela foi uma verdadeira beleza, ainda o é, e a força do seu carácter é evidente em todos os momentos. No filme de Newman, o papel era interpretado por Joanne Woodward e na altura achei-a overacting; a personagem é maior que a vida e por isso presta-se ao exagero. Mas aqui Williams consegue o balanço certo entre a mãe castradora, protectora, dominante e sonhadora. Uma senhora actriz!
Como a tímida Laura, Elizabeth Bochman consegue transmitir toda uma gama de emoções com um simples olhar. Esta jovem actriz, que já tinha tido o prazer de admirar em PYGMALION, ilumina o palco com a sua beleza interior, tocando-nos com a forma ternurenta com que trata as suas figurinhas de vidro e por momentos gostaríamos de fazer parte da sua colecção. Sem querer revelar muito sobre os acontecimentos da peça, não posso deixar de mencionar a simplicidade com que ela, numa determinada cena, passa de uma jovem frágil e sem chama, para alguém cheia de esperança e depois para alguém cuja alma foi quebrada, tudo praticamente sem palavras. Notável!
Gonçalo Cabral, como Tom, é o narrador/personagem da história. É através do seu olhar que assistimos ao que se passa. Sonhador, impaciente, desesperado, ternurento com a irmã, tudo isto Cabral consegue transmitir sem esforço, mais teatral enquanto narrador e mais realista enquanto personagem. Os seus melhores momentos são a cena com a mãe na escada de incêndio e com a irmã sentados no chão. O seu Tom é um jovem amargurado e nostálgico.
O quarto personagem da história é Jim; um colega de Tom que é convidado para ir jantar a sua casa, na expectativa, sem ele saber, de poder ser um pretendente para Laura. E, no papel, Tomás Anderson convence como o perfeito “gentleman caller”. Um pouco convencido, mas simpático, com o sorriso certo, atencioso e sincero. Na sua longa cena com Laura, ele dá-nos um monólogo cheio de vida e esperança e nem por um momento duvidamos das suas palavras.
Bem, entusiasmei-me e já escrevi mais do que é costume. Mas há peças e filmes assim, sobre os quais nos apetece escrever mais. Só gostava que a minha escrita fosse mais erudita, para poder fazer justiça a esta produção e a todos os que trabalharam nela. A melhor coisa que posso dizer é para não a perderem! Só uma chamada de atenção, a peça é em inglês e para tirar bom proveito da mesma um bom conhecimento da língua é imprescindível. Classificação: 8 (de 1 a 10)
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